27 de Outubro de 2008 às 13:01

Olgária Mattos: O "New Deal" de hoje passa pela redução da jornada de trabalho

De onde pode partir a resistência a uma “solução conservadora” para a crise econômica mundial? Como evitar que os mesmos fios esgarçados das finanças desreguladas acabem por cerzir uma nova trama de reordenamento, tão ou mais regressiva que aquela urdida pela supremacia da lógica financeira sobre todas as dimensões da vida social? Em que medida a subjetividade entorpecida por três décadas de anestesia mercadista será capaz de superar o funeral da esperança e ressuscitar valores, e práticas, afinados com outro registro histórico? Essas e outras perguntas esbarram numa parede de ceticismo mais ou menos generalizado que circunda o ambiente intelectual brasileiro nesse momento. Dentro e fora da academia.
 
A filósofa Olgária Mattos, professora titular da Universidade de São Paulo, não desafina o cantochão com placebos de um otimismo dos contentes, mas tampouco se entrega ao descompromisso niilista dos que se divorciaram da História para vocalizar crônicas de um vôo cego.
 
A reportagem e a entrevista é da Agência Carta Maior, 23-10-2008.
 
Pessimista na reflexão, mas aguerrida nos requisitos à ação, Olgária não faz rodeios e vai ao ponto nesses dias em que as palavras capitalismo e crise voltaram a se combinar nas manchetes da grande imprensa mas, paradoxalmente, estão ausentes ou rebaixadas nos debates acadêmicos.
 
“A diferença crucial no enfrentamento dessa crise em comparação com avanços obtidos em 1929”, diz ela, “decorre do rebaixamento ao qual o trabalho e os trabalhadores foram relegados na arquitetura da sociedade em nosso tempo”.
 
O diagnóstico não é novo. Mas ao contrário dos que enxergam nisso quase um fim da história, à gauche, por conta da inexistência de um sujeito coletivo capaz de injetar dialética no absolutismo do presente, Olgária rebate: “Claro que o trabalho continua relevante para a existência de uma sociedade virtuosa”, e saraiva uma pergunta atrás da outra: “Você tem idéia de quantas pessoas são necessárias para cuidar de um idoso durante 24 horas? Quantas vagas teriam que ser abertas se fossemos, de fato, educar as nossas crianças, e ampará-las desde a tenra infância, com uma formação republicana de qualidade? E, sobretudo”, conclui sem hesitar diante dos desdobramentos do seu raciocínio, “será que nós temos idéia do que representaria socialmente a ativação desse conjunto de políticas públicas associada a uma redução da jornada de trabalho; e do efeito que essa disseminação do emprego e do tempo livre teria sobre o lazer e a participação política?”.
 
Outubro de 1929 versus outubro de 2008
 
Cenário de uma das crises mais virulentas da história do capitalismo - insistentemente evocada nos dias de hoje - o contraponto dos anos 30 , mencionado pela professora Olgária Mattos, ficou na memória como a “Década do Diabo”; aquela que começou com uma Depressão e terminou em uma Guerra Mundial. A rememoração dos indicadores sociais daquele período confirma a pertinência do epíteto, revelando uma ciranda de quebradeiras e desemprego que teve seu ponto de partida no “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em outubro de 29. Nove mil bancos faliram então nos EUA; 25% da população economicamente ativa foi jogada no desemprego.
 
Ondas de propagação da crise varreram o planeta. A retração da liquidez na Alemanha foi tal que o escambo terminou oficializado em algumas regiões; o desemprego atingiu 60% da juventude alemã e pavimentou o recrutamento das milícias nazistas. Na França, a retração da demanda gerou uma deflação destrutiva que reduziu em 40% o preço do trigo, inibindo a produção. Na Inglaterra, milhares de mineiros, colhedores de algodão, jovens e velhos ocuparam as ruas espetando acampamentos de desempregados em vários pontos de Londres. No mundo todo, mais de 30 milhões de trabalhadores foram excluídos do sistema econômico disseminando revolta, fome e desalento. Par se ter uma idéia do que isso significou, a OIT prevê que a crise atual poderá gerar 20 milhões de desempregados num mundo com demografia várias vezes superior à de 29.
 
Mas se a intervenção pública se mostra mais resoluta hoje, comparada à timidez dos governos no início da crise de 29, o pano de fundo político é flagrantemente desfavorável a um reordenamento social emancipador. A sociedade dos anos 30 emparedou a hesitação dos seus dirigentes num torniquete progressista de muitas voltas feito de engajamento sindical; expansão das idéias socialistas; efervescente agitação intelectual e artística.
 
“O trabalho organizava o tecido social”, reafirma a professora Olgária. “A criação de laços duradouros entre operários de uma mesma base injetava confiança, solidariedade e esperança em todo o corpo social e não apenas nas corporações. A esperança é parteira do futuro; como é que você pode almejar outro futuro sem esperança e como ter esperança se não dispõe de laços de auto-confiança, necessariamente coletivos? Havia assim uma percepção de responsabilidade social, distinta da desresponsabilização que predomina hoje e contamina todos os interstícios da vida. Vá ao metrô e veja”, dispara Olgária Mattos: “jovens fingem que estão dormindo para não ceder lugar a um idoso. É só a ponta do icebergue. Daí a dissociação entre o que se gostaria que fosse a ação política diante da crise e o comportamento de indivíduos atomizados, partidos por formas precárias de inserção no mercado e na vida”.
 
Eis a razão, retoma a filósofa, “do descompasso entre a crise e as respostas a ela; entre 1929 e 2008. Mas, repito, não é verdade que o trabalho deixou de ser necessário; ele foi descartado por uma estrutura econômica e de poder que redobrou o grau de exploração sobre uma parcela dos trabalhadores. A vida social continua precisando, muito, de mais trabalho”.
 
É sugestivo do grau de entorpecimento intelectual que embala a vida interna das universidades e dos partidos políticos, que parta de uma filósofa, e não de economistas, a incisiva proposição de luta para devolver ao trabalho a centralidade que ele ainda deve ter nas relações sociais neste início de século XXI.
 
Pelo menos a professora Olgária Mattos está convencida disso. No fundo, é como se a filósofa decifrasse a esfinge que alimenta o silêncio dos intelectuais para dizer que o equivalente progressista do New Deal, hoje, passa pela redução da jornada de trabalho. E não apenas pela salvação planetária de bancos e apostadores do capital fictício que infectou uma parte do metabolismo social e anulou a subjetividade crítica da outra.
 
Eis trechos da conversa de Olgária Mattos com Carta Maior.
 
Risco de fascismo decorrente da anomia social
 
“Não creio que esse vazio de mobilização social possa redundar em um avanço do fascismo, como ocorreu na Alemanha na crise dos anos 30. Até para fascismo você precisa de mobilização. Precisa de nacionalismo, de massas em ebulição. O que temos hoje é atomização. Gente desenraizada. Note que nos EUA não foram apenas os ricos que especularam nas Bolsas e mercados financeiros. A bolha imobiliária é a expressão de um engajamento bem mais amplo na ciranda especulativa. Ela arregimentou camadas medianas e até fileiras menos remediadas. É como se o 4º Estado fosse cooptado para o jogo dos de cima. E, claro, a estrutura da sociedade não foi criada para isso”.
 
Democracia no Brasil
 
É claro que a dispersão social não explica tudo. No Brasil, por exemplo, quem se organiza consegue furar bloqueios e alcançar avanços. Se os catadores de papel se organizarem no país, eles conseguem do governo benefícios e direitos. Isso tem que ser levado em conta para se entender inexistência de uma inquietação maior. É um fato: temos canais democráticos de participação e eles certamente resultam em melhores condições de vida para quem se organizar. Não endosso a tese dos que negam tudo e defendem o quanto pior melhor: essa esquerda não consegue explicar a realidade e menos ainda agir sobre ela.
 
Mobralização da cultura e da universidade
 
O rebaixamento educacional é generalizado e dificulta que a crise tenha na cultura um espaço de reflexão e criatividade instigadora de novas soluções. Não se trata de defender uma visão elitista da universidade, ao contrário. O verdadeiro acesso e a democratização envolve certos requisitos que quando não cumpridos provocam um efeito oposto. Significa que o Brasil precisa investir pesadamente na formação e instrução de nossas crianças, na escola fundamental e no segundo grau. Ao não fazê-lo o que temos é uma “mobralização” da universidade. Um rebaixamento sob diferentes formas: o diploma universitário virou um fetiche para, supostamente, abrir portas que não se abrem; a cultura assumiu contornos de saberes episódicos, adaptados à assimilação de portadores de uma bagagem escolar mínima; predomina na vida acadêmica um individualismo entediante, no fundo não existe ambiente universitário.
 
Embrutecimento do tecido social e marketing político
 
A dessocialização não é algo irreversível, tampouco - insisto - a sociedade deixou de requerer trabalho. Muito trabalho. Muito mais do que se oferece hoje e isso deve ser combinado com cortes da jornada que potencializariam uma subjetividade solidária e emancipadora. Mas não é o que vemos hoje. O maior obstáculo a esse salto é o rebaixamento do debate político, substituído pelo marketing populista e de celebridades. O marketing viola a natureza libertadora da política. Torna reiterativo o que deveria ser criativo. Empobrece o repertório social. Infantiliza e manipula a cidadania. O resultado é o sedimentação de um bovarismo social, acredita-se no que não existe. De repente, quem ganha R$ 1,8 mil vira rico.
 
Estamos distantes, ainda, de uma emancipação da pobreza. Seria necessário mudanças profundas nas políticas de rendas para elevar, e não rebaixar, os critérios de emancipação social. O parto desses avanços pressupõe que a política volte a ser o espaço da liberdade e da reinvenção social. O marketing político é o oposto disso tudo. Não espanta, portanto, certa letargia diante da crise econômica atual. Mas não é irreversível.
 
Agência Carta Maior
 

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